O que é que podemos aprender com a história do um rapaz que queria
ser um urso polar? Essa é também a preocupação de Tomáš Halík nas
primeiras páginas da sua autobiografia intitulada Diante de Ti, Os Meus Caminhos.
Será que a sua autobiografia seria somente fruto da sua própria vaidade
ou poderiam as lições aprendidas no curso da sua vida ser úteis para o
leitor? Depois de ter lido o livro, posso confirmar que de facto a
história do rapaz que não cresceu para ser um urso polar nem presidente
do seu país, apesar de ter tido oportunidade, tem muito para nos
oferecer. Em grande parte organizados cronologicamente, os treze
capítulos do livro encontram-se ligados através do tema dos caminhos, os
quais, enquanto ligados à experiência duma pessoa, ecoam várias
preocupações universais.
Somente para cumprir as normas duma presentação formal do um livro,
permitam-me rapidamente enumerar os seus capítulos. Sem surpresa, o
primeiro, O caminho para a fé, discute as circunstâncias do
nascimento de Halík e o contexto da sua vida inicial. Uma vida que
poderia ser descrita como imersão num catolicismo cultural, onde a fé é
somente um padrão cultural, em vez de fazer parte de um exercício
quotidiano. No final deste capítulo, porém, percebemos como Halík se
comprometeu mais substancialmente com a Igreja. Essa atração teve um
contexto: a maneira como a Igreja Católica estava a ser reprimida pelas
autoridades comunistas da Checoslováquia. O segundo capítulo, O caminho
da primavera capta os sentimentos na primavera do 1968:
foi a primavera da minha vida, a primavera da minha fé, a nova primavera da Igreja depois do Concílio Vatiano II, e tudo ao nosso redor e em nós foi impregnado pela a inebriante fragrância primaveril da esperança de um desanuviamento político e duma vida mais livre (p.54).
Essa primavera política foi efémera, porém, e acabou com a ocupação
militar da Checoslováquia pelo exércitos dos países do Bloco Soviético,
situação que lançou os fundamentos para a história que será contada. O
título O caminho para o sacerdócio deixa o conteúdo do capítulo claro, sendo seguido pelo capítulo O caminho da clandestinidade
que narra não só as lutas pessoais de um padre clandestino, mas tambem
reflete sobre as implicações de ser, em primeiro lugar, um padre num
cenário marcado pela repressão e pela perseguição. Dado que a aurora vem
depois da cada noite, por mais escura que seja, O caminho do despertar
narra o eventual relaxamento que o comunismo teve sobre os países da
Europa Central e do Leste, e o papel da Igreja em facultar esse
abrandamento, desafiando o regime e também motivando espiritualmente a
população através de um Decénio para comemorar o centenário de Santo
Adalberto. O caminho da catarse começa com o primeiro ano do
Decénio, o ano da Santa Inês, que foi também o ano da sua canonização.
Foi próximo desta altura que os protestos em Praga começaram, os quais
iriam eventualmente mudar o rosto do país para sempre.
A discussão presente no capítulo O caminho da transição
interessou-me bastante por mostrar a maneira como o dia prometido da
libertação política não implicou que a Igreja tivesse necessariamente um
espaço amplo em que pudesse operar. Ao contrário, resultou na irrupção
de cada vez mais desafios. O Caminho da Fundação narra a história da criação da Academia Cristã Checa, um sonho antigo de Halík
que procurava restabelecer a administração espiritual dos estudantes na
Igreja do Santíssimo Salvador em Praga e o lugar dos diálogos
ecuménicos e inter-religiosos. O Caminho da Noite descreve a experiência traumática quando Halík enfrentou a oposição do chefe do departamento de Teologia. O Caminho da Política
narra as consequências sofridas quando o nome do autor surgiu como um
dos possíveis sucessores a Vaclav Havel como Presidente da República.
Devo sublinhar que a parte que gostei mais ocorreu quando Halík indica que decidiu
não dizer um não absoluto. Um não absoluto aplica-se apenas a coisas que são realmente moralmente erradas em si mesmas. O não que disse à polícia secreta quando me tentou dobrar para uma cooperação. Aceitar uma candidatura presidencial é certamente arriscada, incomum, etc. etc., mas não é imoral. (p.283)
Os caminhos para mundo descreve as viagens de Halík aos quatro cantos do mundo, os quais aparecem sempre como momentos de aprendizagem. O capítulo final intitula-se O caminho para o silêncio eterno.
No seu ensaio “A Morte do Autor” Roland Barthes escreve que dar o
texto a um autor e atribuir-lhe apenas a correspondente interpretação
seria impor-lhe um limite. Respeitando, portanto, Barthes, e Halík
também, o que vou fazer nesta apresentação será oferecer as minhas
próprias respostas ao livro, e falar através das várias localizações que
habito enquanto católico de Goa, na Índia, atualmente a viver em
Portugal. Esta apresentação não será, creio eu, inadequada, dado que
tanto Goa como a Índia se encontram referidos no texto, provavelmente
mais Índia do que Goa.
Havia dois aspetos da descrição dos anos iniciais da sua vida com que
me identifiquei instintivamente. O primeiro trata de uma sociedade e
Igreja sob opressão, e a segunda as mudanças ocorridas depois do
Concelho Vaticano II e as alterações políticas que as acompanharam. Em
Goa, que foi invadida pela Índia em 1961, os anos das duras alterações
políticas, a asfixia da cultura católica e as alterações do Concelho
vieram em rápida sucessão. É verdade que a sociedade cristã em Goa e
Índia, em grande parte, não se confrontaram com o tipo da repressão com
que a Igreja checoslovaca teve que lidar. Todavia, a repressão na Índia
foi mais insidiosa, escondendo-se por detrás da retórica da democracia.
Os cristãos não foram assim somente forçados a viver dentro das
restrições de um poder cada vez mais fascista, mas nos cantos do país
onde havia pouco ou nenhum foco. Cristãos, as suas igrejas e bens foram
assim atacados ferozmente. Este tipo da repressão não pôde deixar de ter
um impacto profundo na vida da Igreja, tal como aconteceu na
Checoslováquia.
Por um lado esta repressão obrigou-nos, clero e leigos, a funcionar
com um inimigo na mente, ao extremo de que quando o inimigo já lá não se
encontrava, fomos à procura de outro para estabelecer a ortodoxia como
um porto seguro. Esta busca teve impactos devastadores, impedindo a
possibilidade do diálogo, o qual se encontra no coração do contrato
social. Estas foram as circunstâncias que garantiram que Halík, que
estava a ensinar na faculdade da teologia, tenha lsido evado a encontrar
resistência por parte do chefe do seu próprio departamento, acabando
com a sua saída para a faculdade de letras onde ainda se mantém
atualmente.
Outra consequência de viver sob opressão implica lidar com aqueles
que colaboram com “o inimigo” ou os poderes que controlam o estado.
Halík documenta este aspeto dentro da igreja institucional da
Checoslováquia. A colaboração surge, porém, sob várias formas, e
gostaria de sugerir que no caso indiano, foi através do muito mal
entendido projeto de inculturação. No capítulo Os caminhos para o Mundo
Halík refere a maneira como este projeto foi articulado na Índia. Halík
observa que havia nas várias dioceses indianas a tentativa de tornar a
liturgia mais consonante com as práticas locais. Ele conta que a
determinada altura foi convidado a dançar num estilo checo durante a
liturgia, tal como os locais. Felizmente Halík declinou o convite
sugerindo que a dança não era a maneira como os checos se expressavam
durante a liturgia! Na minha opinião, um dos maiores problemas com a
inculturação na Índia prende-se com a tentativa de a igreja
institucional alinhar com a cultura bramânica do estado indiano.
Portanto, o que ela fez foi rejeitar as culturas das castas não
dominantes, minar as culturas europeias que já faziam parte da cultura
indígena e musealizar as práticas culturais dos grupos tribais. A
divulgação acontece através dos diálogos inter-religiosos em grande
parte apenas com o Hinduísmo, e quase nenhum com Islão, o que parece
apontar a maneira como, consciente ou inconscientemente, a Igreja
institucional tenta dialogar com poder.
Neste contexto, Halík apresenta-nos a inculturação – tal como tantas
outras pessoas perspicazes, como por exemplo o Papa Bento XVI – não como
a adoção de práticas peculiares, mas sim como um processo de diálogo
com as pessoas à nossa volta, dando testemunho dos valores do evangelho.
Talvez um ótimo exemplo deste processo de inculturação e evangelização
sejam as conversas iniciadas pela Academia Cristã Checa, a qual lançou
debates sobre vários temas, tais como o racismo e o nacionalismo, a
constituição e o novo sistema jurídico político da energia, as reformas
na educação e na saúde, chegando a tocar em temas sensíveis, como a
homossexualidade. Estes debates vão além dos convites habituais, tomando
lugar longe dos centros de privilégio, como a capital nacional em
Praga.
Conversa, ou diálogo, é talvez, o leitmotif deste livro.
Tenho que confessar que fiquei particularmente impressionado com dois
episódios em particular. O primeiro, quando em Roma Halík viajou ao
centro da Opus Dei familiarizando-se com a instituição, e o segundo
quando visitou Écône, onde assistiu à consagração dos bispos pelo Bispo
Lefebre. Para mim estes episódios marcam a atitude de um verdadeiro
académico: alguém que não baseia a sua opinião no que ele/a ouve,
formando-a depois de cuidadosa investigação e de reflexão sobre o
assunto. Como Halík afirma na página 234 “Tudo precisa de ser visto de
vários ângulos”. Halík tambem recorda o Padre Josef Zverina – uma das
figuras mais importantes na sua vida – que costumava dizer que o
princípio católico básico é “não só, mas também”, sugerindo que
esta atitude, marcada pelo ponderação e abertura às nuances, é
fundamentalmente católica. Talvez haja algo mais aqui. A minha impressão
é que a história de Jan Huss, o teólogo checo do século XIV que foi
acusado e executado acusado de heresia, influenciou esta atitude por
parte de Halík. Este episódio marcou não somente o jovem Halík, mas
enfatiza a importância de estar aberto ao diálogo – o que poderia ter
evitado a morte de Huss – e especialmente a necessidade de estabelecer
comunicação com grupos evangélicos que se alicerçam nas memórias do
movimento Hussita.
Um dos temas que percorre este livro é a questão: qual é afinal o
papel de um padre? A pergunta não é tão estranha assim considerando que,
como padre clandestino na Checoslováquia comunista, Halík não poderia
utlizar os marcadores tradicionais de um padre. Vejamos a possível
imagem do novo padre nas palavras do Jesuíta Mikulasek a Halík quando o
autor falou com o primeiro sobre o seu desejo de entrar no sacerdócio “o
sacerdote do futuro deveria ter duas profissões, trabalhando numa
profissão secular e, aí estar principalmente disponível para as pessoas
sem fé e para as que andam à procura” (p. 96). Mais tarde, nas páginas
258 e 259 Halík, como um psicólogo treinado, avisa-nos sobre os perigos
de “cultivar em nome do ideal romântico de um sacerdote santo e
a pressão psicológica causada pela interiorização deste ideal no
decorrer da formação no seminário”. Noutras partes do livro, mais uma
vez salientando o facto de que os bispos e padres são também pessoas
como os leigos, ele imagina o que as pessoas pensariam se elas vissem os
seus bispos em fatos de banho a brincar na praia.
Se estes foram os aspetos com que me identifiquei, houve também
partes do livro com as quais não posso concordar. A autobiografia de
Halík encontra-se marcada por uma forte identificação com a nação. Como
um católico, e um particularmente sensível ao modo como os vários grupos
na Índia foram inferiorizados pelo estado, esta intensa identificação
com a nação não é algo que me atraia. De facto, frequentemente me
questiono se o entrelaçamento entre a Igreja e Nação tão comum na Europa
não contraria a vocação universal da Igreja de tornar discípulos de
todas as nações (Mt. 28:19) e de garantir que, tal como aparece nos
Gálatas 3:28, “Não há nem judeu nem gentio, escravo ou homem livre,
homem ou mulher”, mas uma nação em Jesus Cristo. É correto que a Igreja
se identifique com o local. Apesar de tudo, como antropólogo, reconheço
que é aí que a fé se enraíza. Não obstante, devemos dar o nosso melhor
para garantir que este local se encontra ligado com o nacional, o último
sendo o produto de antigos e continuados projetos de violentas
punições.
Neste sentido, termino com uma observação final sobre outra ideia que
me ocorreu e que se relaciona não apenas com o ênfase que Halík coloca
no diálogo, mas que nos toca a nós em Portugal.
Por outro lado, apercebi-me tambem de que a tão condenanda sociedade pluralista secular, com os seus ideais iluministas de tolerância, direitos humanos e liberdades civis, protege a Igreja da tentação das infelizes recaídas do passado. É bom que vivamos numa sociedade democrática, não anseio de todo por um «Estado católico». Onde quer que a fé se torne numa ideologia estatal, eu serei, em nome da fé e em nome da liberdade, o primeiro dissidente.” (pp. 253- 254)
Ler estas linhas recordou-me do papel da Igreja Católica no debate
sobre a eutanásia neste país. Por muito que admita os problemas éticos
associados à eutanásia, reconhecendo-o mesmo enquanto pecado, houve
momentos em que senti que a Igreja Católica – ou os católicos em
Portugal – ultrapassou o limite, chegando demasiado perto de uma
identificação do país com o Catolicismo. O nosso trabalho acredito que
seja tornar a posição moral clara, de a divulgar, mas de nos lembrarmos
que assumir a legalidade do estado como sendo a única legitimamente
possível em sociedade, é correr o risco que marcou as diferentes
organizações políticas do século XX – seja o comunismo, os fascismos, os
liberalismos precoces, ou de facto, o nosso próprio estado
corporativista em Portugal, personificado no Estado Novo. Será
importante relembrar os intelectuais católicos que precederam estas
situações e as suas vozes que se insurgiram frequentemente contra a
centralização de todo o poder no estado, argumentando a favor da sua
dispersão pela sociedade.
Termino aqui, mas gostaria primeiro de vos agradecer a atenção
dispensada, ao Fr. António Martins, a oportunidade de apresentar este
livro, e a Fr. Tomáš Halík por partilhar a sua história de vida
connosco.
Diante de Ti, Os Meus Caminhos
Tomáš Halík
Paulinas Editora, 2018, Prior Velho, 432 pp., 23,00 € (PB)
ISBN 9789896736620
(Texto da apresentação do livro Diante de Ti, Os Meus Caminhos, autobiografia do teólogo Tomáš Halík na Capela do Rato, Lisboa, 22 Nov 2018. Gostaria agradecer a ajuda da Ínes Figueira em editar este texto. )
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