Desde a visita do primeiro-ministro António 
Costa à Índia, em Janeiro de 2017, e da recente vinda do 
primeiro-ministro indiano Narendra Modi a Lisboa, têm surgido vários 
discursos celebratórios sobre a efetiva aproximação entre os dois 
países.
À superfície, estes discursos parecem trazer consigo a promessa de 
fortes e mutuamente respeitosas relações pós-coloniais. A realidade, 
porém, é bem mais inquietante. As novas relações que Portugal está a 
forjar com esta potência regional demonstram um profundo desconhecimento
 da natureza do Estado indiano. A antropóloga Shalini Randeria cunhou o 
termo ‘cunning state’
 [Estado astuto] para definir a natureza da Índia, ou seja, a de um 
Estado que utiliza acontecimentos internacionais para fortalecer o seu 
poder tanto interna como externamente. De facto, a Índia, enquanto 
Estado astuto, manipulou Portugal e o seu primeiro-ministro, afirmando 
uma duvidosa e racializada leitura da história do subcontinente 
asiático, estrategicamente pensada para abrir caminho a uma nova ordem 
internacional — de carácter neo-colonial — que a Índia espera impor.
O
 desejo de se afirmar no plano global é uma ação legítima por parte de 
qualquer Estado. Mas a forma como a Índia opera é, por várias razões, 
altamente problemática. Uma análise cuidada da concessão do estatuto de Overseas Citizen of India
 (OCI) — Cidadão Ultramarino da Índia, um estatuto em princípio aberto a
 todos os estrangeiros com antepassados dentro das fronteiras da India 
actual — ilustra bem esta questão.
De facto, uma das principais razões para a recente visita de Costa à Índia foi este presidir ao 14.º Pravasi Bharatiya Divas
 (Dia do Indiano no Exterior). Portugal cometeu o enorme equivoco de 
tratar este convite como uma oportunidade para obter acesso ao tão 
desejado mercado indiano. Muito pelo contrário, este convite foi um 
cavalo de Tróia deixado pela Índia em Portugal.  
O aspeto que deveria ter agitado o establishment
 diplomático português ao permitir que o primeiro-ministro português 
seja reconhecido como OCI é deixar a Índia determinar a natureza das 
relações diplomáticas entre os dois países. A Índia reivindicou Costa, 
um homem que se tornou primeiro-ministro sem qualquer apoio do Estado 
Indiano, e desta maneira definiu a identidade do mais alto representante
 de um Estado estrangeiro.
É óbvio que a Índia atingiu este 
objectivo em parte devido ao apoio das estruturas racializadas que 
continuam a dominar a cena internacional e onde Portugal, apesar de ser 
um membro da UE, continua a ser um país semi-periférico. Por estas 
razões, a relação entre os dois países está longe de ser uma interacção 
entre iguais, tendo a Índia uma larga vantagem. É compreensível que num 
contexto de dificuldades económicas graves os empresários portugueses 
lutem por acesso ao mercado indiano. Porém, o Governo português deveria 
ponderar se para isto valerá a pena comprometer a dignidade do Estado e,
 mais importante ainda, os direitos dos seus cidadãos.
A comprovar
 a astúcia do Estado Indiano, o estatuto de OCI não concede quaisquer 
direitos de cidadania de facto; trata-se, apenas, de um visto 
permanente. Na realidade, apesar de as únicas restrições conhecidas aos 
OCIs serem apenas as proibições de votar e a compra de propriedade 
agrícola, vários incidentes demonstram que existem diversas outras 
restrições ocultas, apenas referidas quando da conveniência do Estado indiano.
 O maior problema, contudo, reside no facto de o regime de OCI se basear
 em preconceitos raciais e sectários. (Sendo racismo a identificação de 
grupos de indivíduos como uma raça, grupo étnico ou religioso e a 
atribuição de características indeléveis a estes mesmos grupos). Desde 
logo, porque reforça o preconceito anti-muçulmano do Estado indiano, visto que
 o OCI não é extensível a pessoas com ligações familiares ao Paquistão e
 ao Bangladesh. Mais, com a actual política de OCI, a Índia define 
efectivamente os seus cidadãos através de uma perspectiva étnico-racial 
em vez de uma perspectiva legal. Por exemplo, os antepassados de Costa 
nunca foram indianos. Eram cidadãos portugueses e goeses, sendo que o 
Estado indiano só emergiu em 1947. Identificar os antepassados de Costa 
como indianos seria classifica-los do ponto de vista racial. Desta 
forma, o Estado indiano pretende revindicar como indiano qualquer pessoa
 que provenha do subcontinente em qualquer altura da história, apagando 
desta maneira todas as especificidades das diversas identidades 
sul-asiáticas e agrupando-as numa homogénea e racializada “identidade 
Indiana”. Isto ao mesmo tempo que pretende consolidar um nacionalismo 
cultural bramânico que exclui indivíduos que não pertencem às castas 
dominantes hindus e ignorando deliberadamente os direitos políticos de 
uma grande parte da população e de uma forma profundamente sectária.
Assim,
 quando Costa se afirma orgulhoso da sua identidade indiana, o que está 
efectivamente a fazer é ser cúmplice de um regime racialista e 
neo-colonial. Uma acção que tem consequências múltiplas, não só na 
Índia, mas também em Portugal.
Desde logo, esta postura do Governo
 de Portugal compromete a identidade dos seus cidadãos com ligações ao 
Sul da Ásia que se ressentem ao ser identificados como “indianos”. Este 
rótulo opera efectivamente de forma racialista, pois não só nega a esses
 cidadãos a sua identidade portuguesa como também ignora as 
especificidades das suas múltiplas identidades sociais. Esse é o caso 
dos vários grupos cujos antepassados deixaram o Gujarate e se 
estabeleceram na África portuguesa durante gerações, chegando a Portugal
 como retornados e portugueses. A mesma questão se coloca com os goeses,
 damanenses e diuenses. Para estas pessoas seria crucial poderem ser 
reconhecidas socialmente como portugueses — embora distinguindo as suas 
identidades sociais específicas — em vez de serem agrupados 
indiferenciadamente numa categoria racial única. Esperava-se que o corpo
 diplomático português que aconselha o primeiro-ministro tivesse sido 
capaz de tomar devida nota destas nuances sociais.
Mas a 
natureza racializada das relações luso-indianas não termina com a 
manipulação da identidade de Costa por parte da Índia. Portugal tem tido
 também um papel ativo neste jogo, perpetuando uma tradição colonial e 
luso-tropicalista, ao oferecer o seu “privilegiado entendimento” de 
África aos seus potenciais parceiros indianos, sabendo que a presença 
indiana em África tem dimensões neo-coloniais.
A escolha de um modus operandi
 mais ético na sua relação com a Índia, ao mesmo tempo enfrentando os 
complexos problemas que ensombram esta relação, daria a Portugal base 
para um entendimento mais honesto e possivelmente mais duradouro entre 
os dois países.
Um dos obstáculos a uma feliz convivência entre os
 dois países é sem dúvida a relação de Portugal com os seus antigos 
territórios no subcontinente, especialmente Goa. Esta difícil relação 
deve-se em grande parte aos distúrbios criados por parte de 
nacionalistas hindus ativos em Goa. É frequente ouvir-se os diplomatas 
portugueses na Índia mencionarem em privado que historicamente a razão 
para a ineficácia das relações entre Portugal e a Índia se deve ao 
Governo de Goa e a certos segmentos da sociedade local. Segundo os 
mesmos, as relações com o governo central são, pelo contrário, de grande
 cordialidade. Esta lógica poderá ter sido uma das razões que levou a 
diplomacia portuguesa a querer fundar uma nova relação com a Índia, 
pondo de lado as raízes do passado. Operando como Estado astuto, o 
governo central indiano reivindica completa impotência perante eventos 
“anti-portugueses” em Goa, precisamente por não ter nenhum interesse em 
pôr fim a este tipo de manifestações naquele território. Isto porque a 
retórica dos nacionalistas hindus em Goa não é mais do que uma extensão 
lógica do nacionalismo cultural através do qual a Índia continua a impor
 uma certa identidade nacional.
Pelo facto de assentar num 
nacionalismo cultural, em lugar de num nacionalismo político, a 
construção da identidade nacional indiana sempre foi marcada por ideias 
de inimigos externos e internos. Por esta razão, também, a presença 
portuguesa será sempre vista com suspeita, e a história portuguesa no 
subcontinente sempre disponível para ser recordada de acordo com a conveniência
 dos interlocutores e a obvia desvantagem dos investidores portugueses 
na Índia. Dado o poder que o governo central indiano tem sobre os seus 
estados, especialmente quando o mesmo partido governa tanto a nível 
nacional como regional, a invariável alegação de impotência para 
intervir na situação de Goa deve ser vista com grande cepticismo. 
Desempenhando o papel de Estado astuto, a Índia permite e incentiva o 
florescimento de alguma instabilidade regional, porque a mesma lhe traz 
vantagens na sua estratégia geo-política mais alargada.
Uma 
política externa que reconheça a natureza do Estado indiano permitiria a
 Portugal perceber que abandonar o passado português no subcontinente 
nunca poderá gerar uma relação madura e equitativa com a Índia. Na 
verdade, é no confronto das questões relacionadas com o fim do Estado da
 Índia Portuguesa, como a maneira em que o Estado indiano nega aos 
residentes destes antigos territórios a dupla nacionalidade,
 que Portugal poderá construir uma relação honesta com a Índia, cumprir 
com as suas obrigações enquanto descolonizador, confrontar os seus 
desejos neo-colonialistas que ensombram a sua relação com os PALOP e, ao
 mesmo tempo, enfrentar os complexos desafios raciais que estão longe de
 estar resolvidos em Portugal.
(Este post foi publicado como Opinião no Publico no 5 Jan 2018)

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